Caxambu Santa Cruz – Monte Alegre
O que é o Caxambu?
O Caxambu é uma manifestação que remonta aos tempos da escravidão no Brasil. Já naquela época, os negros escravizados costumavam cantar e dançar por horas a fio, invadindo as madrugadas. Não raro seus senhores observavam da varanda da casa grande, atraídos pelo som dos tambores e pela cantoria. Originalmente um ritual de resistência à escravidão, o Caxambu consiste na formação de uma roda para cantar jongos (versos algumas vezes improvisados, tendo como tema a fé e o cotidiano).
A permissão das rodas fazia parte das negociações entre escravizados e senhores. Dessa forma, buscava-se amenizar o sofrimento do cativeiro. Para que os senhores e feitores não entendessem o que os negros cantavam, os versos tinham uma característica que persiste até os dias de hoje: eram cifrados. Com isso, podiam debochar dos senhores e capatazes, por exemplo, sem a ameaça do castigo físico.
Por meio dos versos os caxambuzeiros também resolviam rivalidades surgidas nas senzalas. E faziam isso em batalhas verbais. Quem perdia o desafio poderia sofrer consequências físicas ou no plano espiritual. Vem daí a tradição de “amarrar” alguém na roda do Caxambu. Quando “amarrada” a pessoa não consegue deixar a roda, fica numa espécie de transe. Não um transe de elevação espiritual, mas de sofrimento.
Além de debocharem dos seus opressores nas rodas, por meio dos jongos os caxambuzeiros também desafiavam seus senhores e invocavam os santos e orixás de devoção, a quem clamavam por ajuda para se libertar da escravidão. Era uma forma de resistir aos maus tratos e não perder a alegria. As rodas eram formadas sempre ao lado de uma fogueira, ao som de batuques e tambores.
Em Cachoeiro de Itapemirim são utilizados apenas dois tambores: o caxambu (o maior, com função de “chamar”) e o candongueiro (o menor, que tem como função “responder”). Quem participa de grupo de caxambu é chamado de caxambuzeiro.
O “raiar” da liberdade
Com o fim oficial da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, muitos negros escravizados se juntaram para comemorar, agora de forma ostensiva, sem a ameaça de castigos físicos. O caxambu tornou-se então uma comemoração à liberdade com tambores feitos de troncos ocados de árvores.
A celebração de um “raiar” da liberdade, supostamente concedida, revela uma visão ingênua sobre o processo da abolição da escravatura no Brasil. Muitos fatores concorreram para o encerramento oficial do regime escravagista, inclusive a resistência dos negros. Essa resistência cada vez mais organizada, à época, deixou os agentes políticos e econômicos temerosos de que houvesse uma tomada de poder, a exemplo do que ocorreu no Haiti entre 1791 e 1804.
A Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835, assim como outras que ocorreram no país, incluindo o Espírito Santo, onde houve a Insurreição de Queimados, no ano de 1849, foi um demonstrativo da capacidade de mobilização dos negros e influenciou decisivamente no fim oficial do regime escravagista. Por isso houve tanta comemoração naquele 13 de maio.
Os negros, até então “subjugados”, abandonaram as fazendas e foram comemorar em frente à Câmara Municipal de Cachoeiro. Mas a euforia logo deu lugar à realidade. Não havia moradia e nem comida para eles fora das fazendas, o que os obrigou a retornarem como forma de garantir a sobrevivência.
Segundo registros históricos, em Cachoeiro a “festa da abolição” foi patrocinada por um dos principais e mais violentos escravagistas da região, o então presidente da Câmara, o fazendeiro Tenente João Cândido Borges de Athayde. O mesmo homem, acusado de aplicar castigos rigorosos nos escravizados, foi o que, em 1888, reuniu os monarquistas em frente à Câmara Municipal para festejar, ironicamente ao som dos tambores dos caxambus, tanto a abolição da escravatura, ocorrida em 13 de maio, como o aniversário do imperador Pedro II. Para atrair um público expressivo ao evento, foram distribuídos pão, carne e vinho aos então recém libertos que festejaram até o sol raiar. Na mesma festa gritavam “vivas” à monarquia e “foras” à república.
A provocação não passou em branco. Como resposta, os republicanos chamaram os negros de “canibais” e de “miseráveis desgraçados da sorte”, em matérias publicadas no jornal “O Cachoeirano”. Também os acusaram de bebedeira e baderna e lembraram que a lavoura encontrava-se desorganizada pela recusa dos ex-escravizados, de voltar ao trabalho, pois só queriam viver nos batuques.
Os republicanos criticaram o que consideravam uma hipocrisia por parte do presidente da câmara, que havia sido escravocrata e acusado de assassinar o “escravo” Martiniano.
Múltiplas vozes e versões
“Quem conta um conto aumenta um ponto”. O dito popular se aplica com perfeição à história do Caxambu Santa Cruz, em Monte Alegre, zona rural de Cachoeiro de Itapemirim. A origem da manifestação tem um quê de fantástico, reafirmado nas múltiplas versões a respeito da história de um “escravo” chamado Adão. Suas peripécias são narradas com tal convicção que seria atrevimento extremo duvidar de que realmente tenha existido e protagonizado tantas aventuras. Seus feitos têm sido contados e recontados por décadas. Sempre com vivacidade e entusiasmo. E, não raro, com novas cores.
Se Adão realmente existiu?
Adevalmira Adão Felipe, a Cumadi Ilinha, afirma que sim. Ela é personagem lendária no universo dos caxambus por ter sido a primeira mulher a tocar o tambor, há quase seis décadas, quando ainda era uma menina de 13 anos. Cumadi Ilinha descende dos fundadores do quilombo de Monte Alegre e do Caxambu Santa Cruz.
“Desde que me entendo por gente nosso caxambu já tem esse nome. Meu avô já tinha caxambu”, conta. E foi por meio do avô que conheceu as aventuras fantásticas do “escravo” Adão. Reza a lenda que Adão, apesar da vigilância na senzala, conseguia fugir misteriosamente para dançar em bailes nas fazendas vizinhas.
Um belo dia, lá na curva do Eraldo (hoje Fazenda Cafundó), Adão encontrou uma cobra enorme no meio do caminho, segundo a versão que vem sendo contada oralmente na comunidade de Monte Alegre. “Pois ele matou a cobra e colocou no mesmo lugar da estrada como expediente para atrasar seus perseguidores”, narra Ilinha, com um riso de canto de boca. Com isso o fazendeiro que o perseguia passou horas esperando a cobra atravessar a estrada, e Adão conseguiu voltar serelepe para casa. O lugar atualmente recebe o nome de Trilha do “Escravo” Adão.
A forma como Adão conseguia fugir da senzala para namorar, divertir-se nos bailes e também arrumar confusão era um mistério. Bem que os capatazes tentavam flagrá-lo e trazê-lo de volta, mas ele sempre dava um jeito de despistá-los. Faziam tocaia e nada. As peripécias de Adão povoam o imaginário de gerações.
Uma das versões é a de que teria sido ele o fundador da comunidade de Monte Alegre. Ele teria vivido na Fazenda Boa Esperança, vizinha a Monte Alegre, e dormia no tronco. Apesar de acorrentado, por meio de suas orações conseguia sair para se divertir. De manhã já estava de volta.
O tronco era usado como instrumento para disciplinar e torturar os escravizados que não se comportavam de maneira tão dócil ou que faziam “corpo mole” no trabalho, dando prejuízos aos fazendeiros. Tais atitudes, na verdade, eram uma forma de resistência ao cativeiro. No caso de Adão, seu temperamento fujão motivava o castigo.
Adão também cultivava a fama de briguento e namorador. Segundo contam os mais antigos, ele ia nos “bailes” (as rodas de caxambu) das fazendas vizinhas e seduzia as moças. As casadas também eram alvos de suas investidas, o que acabava em confusão quando os maridos percebiam o movimento do sedutor.
Religiosidade e poderes mágicos
As escapulidas de Adão eram um mistério. Poderes mágicos? “Ele tinha algum saber”, afirma Maria Laurinda Adão, mestra do Caxambu Santa Cruz. Segundo acredita, Adão usava a magia para escapar do tronco. Tais poderes (ou dons) teriam sido herdados na comunidade por Paulo Adão, irmão de Maria e Cumadi Ilinha.
Muitas histórias mágicas envolvem as rodas de caxambu em tempos idos. Uma das mais conhecidas é a de uma bananeira que crescia em tempo recorde. Era plantada no meio da roda de caxambu, frutificava e tinha seus frutos comidos na mesma noite.
Outra também muito popular é a de um desafio em que o jongueiro atirou seu cajado no meio da roda, e o objeto transformou-se em uma cobra. O jongueiro desafiado, certamente mais forte e experiente do que o primeiro, jogou então seu chapéu no meio da roda. O chapéu transformou-se em um gavião que, imediatamente, capturou a cobra para devorá-la. Com isso, o primeiro jongueiro ficou preso (amarrado) na roda até que o segundo decidiu soltá-lo.
Entre fios de memória
Cumadi Ilinha iniciou-se no Caxambu acompanhando o avô materno, Zé Ventura. Mas houve um tempo em que a presença das crianças na roda era proibida. Havia um quê de mágico e sobrenatural nas rodas de antigamente, segundo conta. “O amarrado ficava como que hipnotizado. Hoje não mais”, diz. Isso ocorria em casos de desafio ou “abuso” por parte de um dos participantes. Nesse caso somente o mestre poderia desamarrar o ponto.
Segundo Maria Laurinda, o Caxambu Santa Cruz foi herdado por seu avô José Ventura. Os mais velhos foram morrendo e um tio chamado Nélson assumiu. Por último, estava sob a responsabilidade da mãe de Maria, Dona Eremita. Bem antes de morrer ela entregou o comando do Caxambu Santa Cruz à Maria. Missão que ela cumpre com abnegação.
A irmã Ilinha a acompanha na empreitada. Maria conta que foi escolhida por ser a mais interessada, curiosa. É mestre há mais de 60 anos. Assumiu a função aos 17, muito jovem, e ainda segue firme na função.
Caxambu Santa Cruz: a origem
De acordo com a história oral difundida em Monte Alegre, e ratificada por Maria Laurinda Adão, o Caxambu Santa Cruz teria surgido por ocasião do 13 de maio de 1888, quando “raiou a liberdade”. Contudo, as histórias das peripécias de Adão, contadas pelos próprios moradores, dão conta de que já havia rodas de caxambu antes.
A mobilidade dos negros entre as fazendas e também de quilombolas que mantinham relações com negros escravizados, tanto da sua fazenda de origem como de outras fazendas também, é fato comprovado historicamente, inclusive no Sul do Estado. As rodas aconteciam nos terreiros de café que ficavam no centro do complexo agroindustrial da fazenda cafeeira.
O terreiro era circundado pelas principais edificações da fazenda: casa grande, senzalas, tulhas e demais construções. No centro do terreiro ficava o tronco. O castigo deveria ser público, para gerar medo nos escravizados. O terreiro tinha outras funções: era uma espécie de praça pública; local de trabalho (na lida com a secagem e beneficiamento do café); espaço de lazer (onde aconteciam as rodas de caxambu e também as manifestações religiosas).
Sobre a primeira roda do Caxambu Santa Cruz, Maria se fia na versão que o avô narrava. Teria sido no 13 de maio de 1888, no “raiar da liberdade”. Segundo ela, na falta de instrumentos, bateram caixotes de querosene. Só depois surgiram os caxambus. Uma curiosidade é que os instrumentos são os mesmos desde os tempos em que o avô comandava o grupo. “Só mudou o couro”.
Maria afirma que Adão não tem relação com a criação do grupo, mas sim com o surgimento da comunidade de Monte Alegre. “O caxambu começou com meu avô José Ventura”, sustenta. Essa versão não é uma unanimidade, pois segundo os relatos, o caxambu seria bem mais antigo. Sobre a vinculação religiosa com a Umbanda, ela diz que o Caxambu nunca tocou em Centro, versão confirmada por Ilinha.
Quanto à comunidade quilombola de Monte Alegre, onde o Caxambu Santa Cruz tem suas raízes, Maria diz que tem sua fundação ligada às famílias Adão e Ventura, depois vieram os Veridianos. Mas a mais antiga é Adão.
Mais recente no grupo, Geralda Nogueira Calixto participa desde 2003. Ela conta que já conhecia o grupo antes, mas não fazia parte. “Minha mãe tinha caxambu na Mangueira. Pra mim é cultura”. Mesmo com dores nas pernas, ela se mantém ativa como caxambuzeira.
Maria Laurinda, uma mulher plural
Altiva, bonita, forte e decidida. Maria Laurinda cabe em tantos adjetivos. Mas no Caxambu Santa Cruz o de mestra é o mais importante. Apesar da idade, Maria se mantém ativa, lúcida e combativa na defesa do que acredita e, sobretudo, nas tradições de sua comunidade. É também uma referência religiosa para várias gerações.
O Centro de Umbanda São Jorge hoje sob a liderança de Maria Laurinda, era do irmão Paulo Adão. “Vou morrer na minha fé”, ela diz. A missão religiosa conta com o apoio e a parceria da irmã Ilinha.
A biografia de Maria reúne múltiplos e variados papéis, alguns antagônicos como o de parteira e coveira. Ainda mocinha fez o primeiro parto. Depois perdeu as contas de quantas crianças ajudou a trazer ao mundo. Isso num tempo em que quase não havia médicos por perto, muito menos a possibilidade de um acompanhamento pré-natal.
Na direção contrária, atuou como coveira, testemunhando o fim de jornada de tantos, conhecidos ou não. Desde cedo Maria tomou as rédeas da própria vida, assumindo a liderança comunitária e participando também de diversos movimentos sociais, em especial na defesa dos direitos da mulher. É reconhecida como grande voz dos grupos de patrimônio imaterial em atividade no Espírito Santo.
O que será?
A exemplo de outras manifestações do patrimônio imaterial, não só no Sul do Espírito Santo como em outros pontos do país, a continuidade da tradição é uma incógnita. A maioria dos jovens tem outras distrações e interesses. Muitos migraram para a zona urbana em busca de trabalho e melhores condições de vida.
“O caxambu é uma tradição, não vai acabar. As crianças estão aprendendo. Estão cantando jongo”, acredita Maria Laurinda. Atualmente há pelo menos uma roda por mês e, sempre que possível, o grupo viaja para apresentações em outros lugares.
Como os herdeiros de Maria, em sua grande maioria, tornaram-se evangélicos, caberá à linhagem da irmã a continuidade das missões com o caxambu e também com o Centro. Os filhos e netos de Cumadi Ilinha são presença constante. Uma das promessas é Cleuves, o neto que toca os tambores junto com a avó.
Octogenária, Cumadi Ilinha não perde uma roda de caxambu. Ela participa com dois netos, o filho e o bisneto. “Para mim o caxambu é uma diversão. Aprendi assim. E para tocar não é força, é jeito. O canto tem que ter o compasso do tambor”, ensina.
Ela lamenta que as rodas tenham se esvaziado com o tempo. Havia rodas de caxambu em diversos lugares. No dia 13 de maio era mais comum tocar em Conduru, distrito de Cachoeiro de Itapemirim. Ilinha tem também a função de acender a fogueira nas rodas do Caxambu Santa Cruz. “Acostumaram comigo”, brinca. Ela revela que se não esquentar o caxambu, instrumento, não sai o som e fere as mãos. É o calor do fogo que “afina” o couro e não deixa machucar as mãos.
A hierarquia das funções é assunto sério nessa herança dos tambores. Somente Cumadi Ilinha é quem pode autorizar a pessoa a tocar. Ela sempre toca o tambor maior, o Caxambu (que é o mais difícil de ser tocado), enquanto o outro quem pode tocar é Adão, filho dela, e já há algum tempo o Cleuves, seu neto. O rapaz fala do caxambu com entusiasmo. Seus filhos, ainda crianças, são dos mais animados caxambuzeiros do grupo.
Acender a fogueira não é um ato corriqueiro no ritual das rodas de caxambu. Tem conotação quase religiosa. Dona Ilinha se afasta de todos, faz uma espécie de oração (fica um tempo pensativa na frente da madeira a ser queimada) e só depois acende o fogo. Fica ali “goivando” (cuidando do fogo para que ele pegue na madeira seca e não se espalhe para além da fogueira) até o fogo acender completamente. Só depois ela pega os tambores, coloca perto do fogo para aquecerem e, finalmente, iniciar a roda.
O otimismo de Maria Laurinda se baseia na presença de jovens e crianças nas rodas. “Antigamente nem podia criança. A roda tinha mistério, hoje não tem mais. Mas a gente sabe que caxambu não é brincadeira”, diz, numa referência implícita ao aspecto religioso da manifestação. Assume um ar sério e diz: “tambor não é brincadeira”.