Charola de São Sebastião – Alto Paulista/Jacu

O que é?

É uma manifestação cultural, de cunho religioso, em devoção a São Sebastião. Assemelha-se à Folia de Reis nas vestimentas, na organização e na peregrinação. Sua jornada ocorre entre os dias 6 de janeiro (Dia dos Santos Reis) e 20 do mesmo mês, dia dedicado ao “Santo Mártir Guerreiro”. Já a Folia de Reis cumpre a peregrinação para anunciar o nascimento de Jesus entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro. Outra diferença é que na Charola não há palhaços, e a jornada é cumprida no período diurno.

No começo eram apenas os foliões. As quatro dançarinas foram introduzidas há cerca de 44 anos. “Fomos cantar em Anutiba e havia um grupo de moças estudantes que acompanhou o grupo. Foi numa festa. Gostamos da ideia”, lembra Izaías Quirino da Silva, mestre do grupo. Desde então há dançarinas no grupo, variando de quatro a cinco, sempre da família.

Há um único grupo em atividade no Espírito Santo. É a Charola de São Sebastião de Alto Paulista e Jacu, comunidades que pertencem ao distrito de Burarama, na zona rural de Cachoeiro de Itapemirim. Na região Sudeste há outras charolas em atividade em Minas Gerais.

Charola significa um andor em procissão. O ritual do grupo faz parte do catolicismo popular e reproduz uma espécie de procissão para exaltar as virtudes do santo, que teria sido martirizado por defender a sua fé cristã.

A Charola tem 16 componentes: mestre, contramestre, bandeireiro, foliões e as dançarinas, considerados “soldados” de São Sebastião. Cada elemento desempenha uma função diferente. Cabe ao mestre dirigir o grupo e conduzir as toadas por meio do apito. O contramestre assume o lugar do mestre quando este, por alguma razão, é impedido de atuar. O bandeireiro tem como função conduzir a bandeira à frente do cortejo. Os foliões tocam instrumentos musicais, enquanto as dançarinas repetem passos coreografados no meio da roda.

A jornada começa sempre com uma prece ao santo de devoção, por volta do meio dia do dia 6 de janeiro, e termina também por volta do meio dia do dia 20 de janeiro. No encerramento da peregrinação é feita uma grande festa com a presença de muitos visitantes. O local é a Casa de Oração São Sebastião.

É uma ocasião aguardada com ansiedade por todos do grupo e também pelos frequentadores da Casa de Oração. Logo de manhã começam a chegar os grupos de jornaleiros, organizados em bate flechas de São Sebastião, enchendo o espaço de cores e sons. Quando um grupo visitante chega, anuncia sua chegada com fogos de artifício. O secretário da casa vai recepcioná-lo no portão.

Esse é um momento solene, quando é feita a troca de bandeiras. Os grupos então seguem tocando seus instrumentos de sopro e batendo suas flechas para o cruzeiro localizado em frente da casa de oração. Em seguida entram no local sagrado para receberem a bênção. Encerrada a recepção a todos os grupos visitantes, a charola chega em jornada e adentra a casa de oração para fazer sua entrega aos pés do altar de São Sebastião.

Nesse momento os músicos vão deixando seus instrumentos no altar e, pouco a pouco, a banda vai reduzindo o volume do som até silenciar completamente. É um momento mágico e sagrado. Em seguida todos confraternizam num almoço comunitário oferecido aos jornaleiros. No cardápio, comida caseira preparada com afeto e devoção.

As toadas cantadas durante a jornada abordam a vida, o sofrimento e os feitos heroicos do mártir. Mestres e foliões usam roupas multicoloridas. No acompanhamento musical há violão, viola, cavaquinho, bumbo, caixa, acordeão, triângulo e pandeiro. A bandeira, também multicolorida, ostenta adereços como fitas e imagens do santo.

 

O começo

A história da única charola em atividade no Espírito Santo se confunde com a história dos irmãos Quirino e é permeada por um forte sentimento devocional e narrativas de episódios místicos. Segundo contam, há muitos anos existia um grupo em Alegre, cujo mestre era Edgar Capetine.

Os irmãos Quirino tiveram contato com o grupo em Anutiba, onde moravam, no interior de Alegre, município vizinho a Guaçuí, há pouco mais de 69 anos. No começo eram Adílio, então com sete anos, e Ismael, na faixa dos nove. Quando Capetine deixou Anutiba, segundo relatam, José Nicotti, o Zezinho Nicotti, assumiu a função de mestre do grupo que era folia e charola ao mesmo tempo. No ciclo natalino (de 24 de dezembro a 6 de janeiro) era folia de reis. Depois mudava a bandeira e prosseguia a jornada até 20 de janeiro, como charola.

Um folião do grupo comandado por Capetine teria feito uma promessa e pedido as cópias das músicas, o que contribuiu para o surgimento da charola em Anutiba. Os irmãos Adílio e Ismael acompanharam o grupo até se tornarem rapazes. “Seu” Adílio, hoje com 76 anos relembra que o irmão tornou-se mestre aos 18. O mais jovem, Izaías, hoje com 69, passou a contramestre.

“Seu” Adílio chegou a tocar a maioria dos instrumentos da charola. Com a morte do irmão Ismael, “aos 50 e poucos anos”, coube ao mais jovem, Izaías, assumir a função de mestre e a Adílio a de contramestre. Ele conta que a relação da família com a charola começou com a figura do pai Manoel Quirino da Silva, que atuava como contramestre em um grupo na região do Caparaó, pelo lado de Minas Gerais. O pai também compunha Folias de Reis.

Sob o comando dos irmãos Quirino, a Charola de São Sebastião existe há mais de 50 anos e continua em pleno vigor, movida pela devoção ao “santo mártir guerreiro”. A família mantém a fé e o compromisso com a tradição. Os filhos de Ismael, Gesiel e João Batista, atuam como sanfoneiros.

 

A fé

A Charola de São Sebastião reúne características do catolicismo popular e do esoterismo. Conforme explica o próprio mestre Izaías, está vinculada ao Círculo Esotérico que se aproxima do kardecismo. Os rituais envolvem a apresentação de bate flechas, cânticos e orações.

Na Casa de Oração, erguida na localidade de Jacu, pode-se constatar as referências do hibridismo religioso. No altar e em outros pontos do local há imagens de santos católicos como Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição, São Jorge, São Pedro, a Sagrada Família e, claro, de São Sebastião.

O termo empregado pelos mestres para referenciar a religião que professam é esoterismo. No esoterismo a bebida é água e a vela só branca”, ensina mestre Izaías. A casa de oração que funcionava em Alto Paulista foi transferida para Jacu, há doze anos. Mas as atividades em Alto Paulista, localidade de difícil acesso, ainda são realizadas regularmente.

A charola foi criada pelos três irmãos Quirino em devoção a São Sebastião com influência direta da mãe Luzia, que também era devota. Segundo contam, há muitas histórias de graças alcançadas. “O milagre está acontecendo no meio da gente”, diz em referência à construção da casa de oração em Jacu, local de mais fácil acesso do que em Alto Paulista.

 

Os mestres

“Seu” Adílio, 76 anos, foi trabalhador rural durante toda a vida. Atualmente está aposentado e mora com a esposa Erotildes em Cachoeiro de Itapemirim. O casal teve nove filhos, tendo perdido um ainda criança. São cinco homens e três mulheres. O caçula Alexander, de 40, já substitui o tio e mestre Izaías quando este não pode conduzir o grupo.

Dona Erotildes, 73 anos, conta que começou a namorar o marido aos 14 anos. Na charola ela toca triângulo e faz requinta (segunda voz). Em mais de 55 anos de casamento, só faltou à jornada anual quando o nascimento de dois dos nove filhos coincidiu com o período.

“Charola é muita coisa. Tem a parte religiosa. Tenho muito respeito porque recebi muitas bênçãos. Representa devoção para a minha família e também para quem recebe a gente na jornada”, diz Adílio. “A vida sem a charola seria muito triste”, emenda a companheira Erotildes que planeja cumprir as visitas jornalares ainda por muitos anos.

O mestre Izaías reside em Jacu. Conhecido pela oratória vibrante e precisão das palavras, é também quem comanda os trabalhos quinzenais na Casa de Oração. A exemplo do irmão Adílio, entrou para a charola aos sete anos. Aos 18 já era mestre. “Naquela época tinham acabado as folias”, lembra.

Ele também lamenta que a intolerância religiosa seja um obstáculo cada vez mais frequente à manutenção da tradição. “Mesmo dentro da comunidade há quem não aceite a charola. Para mim, evangélico é todo aquele que manuseia e vive os princípios do evangelho. Nós aceitamos quem vem orar com a gente. Mas outros não aceitam. Há pessoas que recebiam a charola antes e hoje não nos recebem mais em suas casas”, diz.

Desde que iniciou as atividades no grupo, Izaías afastou-se apenas por um curto período de três anos, quando morou no Rio de Janeiro. Mas se sentiu chamado a retomar as funções e assim o fez.

 

O futuro

A Charola de São Sebastião se mantém pelo compromisso de fé e devoção dos foliões. Mas mestre Adílio lamenta que hoje não seja tão bem recebida como antes. “Hoje muitas pessoas têm outra religião e não querem mais receber. Só vamos onde somos convidados a entrar”.

Mas se depender do interesse da nova geração da família, haverá visita jornalar todos os anos. Há mais de um descendente preparado para assumir o comando do grupo, segundo afirma Adílio.

Izaías, contudo, manifesta preocupação com o futuro do grupo. “A charola mudou. As pessoas que acompanhavam já não acompanham mais. Antigamente havia mais tempo. Hoje as pessoas trabalham em outras atividades e não podem sair durante a semana”. Antes a jornada era cumprida sem interrupção. Agora não mais.

 

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