João Inácio (in memoriam)

Mestre de Folia de Reis

“A Folia de Reis vem do princípio do mundo”

Sempre que perguntado sobre o significado das Folias de Reis, mestre João Inácio respondia com convicção: “Isso vem do princípio do mundo”.  Era, em toda a sua simplicidade de filho de lavradores, uma forma de conferir  legitimidade e sentido à devoção que norteou sua existência.  Ele foi um dos mais respeitados mestres foliões do Espírito Santo.

Nascido em 17 de outubro de 1933, em Muqui, começou a acompanhar  Folias de Reis ainda menino. Aos dez anos seguia o pai na Folia Estrela do Oriente. Em 1951, aos 18, mudou-se para Cachoeiro em busca de trabalho. Três anos depois montou seu próprio grupo, a Folia Estrela do Mar, no bairro Zumbi, da qual foi mestre por mais de meio século, quase o tempo de duração de seu casamento com Almerinda.

Bem humorado, brincalhão, divertido, mas ao mesmo tempo sério e rígido quando o assunto envolvia o universo dos “Santos Reis” e a disciplina dos foliões, revela a viúva com quem conviveu  por 56 anos e teve duas filhas. “Começamos a namorar quando eu tinha 13 anos, casamos aos 18 e vivemos juntos 51”, conta Almerinda com os olhos cheios de lágrimas.

Apaixonada pelo marido, leva sempre na bolsa dezenas de fotografias dele, de várias fases da vida. É o jeito que encontrou para amenizar a ausência física e o incômodo da saudade permanente. João Inácio morreu em 1º de dezembro de 2009, aos 76 anos, em casa. Em 2010 a lei municipal 5388, que reconhece e certifica os mestres da cultura popular como Patrimônio Vivo em Cachoeiro, ganhou seu nome.

Almerinda jamais saiu na Folia, mas respeitava a devoção do marido. Nos últimos tempos  chegou a acompanhar o grupo, mas somente  porque “Seu” João  já estava doente. Para o mestre, Folia de Reis era sinônimo de devoção e penitência. “Ele tinha respostas e sabia todas as toadas de cor. Era cada uma tão bonita que tocava o coração da gente”, lembra emocionada. Desde que João Inácio morreu, ela se recusa a ver ou ouvir Folia “porque é sofrido demais”.

Iletrado, Mestre João Inácio  forjou sua visão peculiar sobre o Evangelho e a própria vida a partir do que viu e ouviu desde menino.  É a oralidade a fonte primária do saber da cultura popular. Em 2006 sua versão do Evangelho foi tema do documentário “O Evangelho segundo Seu João”, de João Moraes e Eduardo Souza Lima.

Em 2009 recebeu o Prêmio Mestre Armojo do Folclore Capixaba, concedido pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult) com o objetivo de premiar a atuação dos mestres das manifestações do folclore, fortalecer e divulgar os saberes e fazeres, reconhecer e valorizar os mestres e conceder aos  contemplados o título de “Mestre da Cultura Popular do Estado do Espírito Santo”.

“Seu” João era capaz de narrar “histórias da bíblia” por horas a fio, com surpreendente  riqueza de detalhes e tamanha firmeza que ninguém se atreveria a duvidar, mesmo dos episódios mais fantásticos. Criava parábolas para explicar os fatos e para tudo buscava respostas.

Com base nessa visão de mundo particular, percebia-se como um homem destinado a cumprir uma missão: repetir a jornada dos “Santos Reis” a cada ciclo natalino e ensinar o que foi decretado por Deus. Quem o conheceu não tem dúvida de que conseguiu cumprir tal missão.


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